O evento paulista aconteceu em fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo, e a movimentação cultural e artística de Roraima ocorreu décadas depois.
- Por: Aysha Bellido, Alessandro Leitão, Fernanda Fernandes, Ruan Vitor, Yara Ramalho e Yohanna Emmelly
Teatro Municipal de São Paulo - Foto: Reprodução/Google
No verão de 1922, o Theatro Municipal de São Paulo teve palco e salões ocupados por obras de artistas que iriam implantar o mais famoso evento artístico e cultural do país. Com uma nova estética artística inspirada em movimentos vanguardistas europeus, a Semana da Arte Moderna trouxe apresentações de dança, música, recital de poesias, exposições de artes como pinturas, esculturas e palestras. Sendo visto como um novo modelo de arte.
O evento implementou também uma arte mais livre e com características mais brasileiras, que quebrassem a estética acadêmica, sobretudo do parnasianismo.
Cerca de 3 mil quilômetros de distância da capital paulista, Roraima, no extremo Norte do Brasil, também foi influenciada. 62 anos depois do evento histórico, a população do estado conheceu o Movimento Roraimeira, idealizado pelo poeta, cantor e compositor Eliakin Rufino. O artista conta que mesmo com a distância geográfica, o movimento regional teve referências artísticas e culturais não só da Semana da Arte Moderna, mas de todo o modernismo.
“Eu acho que isso é o que norteia também aqui [movimento Roraimeira], são os principais referenciais artísticos e culturais do modernismo brasileiro, voltar-se para o que é local, né? É não ficar mais tentando imitar, copiar, traduzir uma arte estrangeira, uma maneira de se expressar, não o que é feito em outro lugar”,
Para o poeta, a idéia é procurar uma maneira própria de se expressar e expor a arte no estado. Segundo ele, "ao contrário do que parece ser uma atitude xenófoba, os modernistas acreditam que essa é uma idéia antropofágica, capaz de produzir algo original".
O professor e pesquisador da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Roberto Mibielli, explica que o modernismo brasileiro tinha a preocupação de acabar com os padrões conservadores da época e, por isso, chocou grande parte da platéia presente.
“Na pintura e na música, o Brasil já tinha experiências um pouco anteriores à Semana de Arte Moderna, e bastante razoáveis. Mas, em princípio, a Semana em si, como todos apontam, não teve grande repercussão. Então, pra época ela foi um escândalo em São Paulo e a ideia era de fato fazer escândalo em torno do que era necessário mudar, em torno do que era necessário refazer”, disse o professor.
Um dos principais objetivos do evento era uma arte mais informal, improvisada e com uma maior liberdade de produção. Dessa forma, tudo isso se tornou uma regra da arte moderna, de modo que rompesse com o formalismo das artes.
Além disso, o movimento e as propostas inovadoras são frutos dos acontecimentos do tempo. À época, São Paulo estava crescendo, em 1900 a população da capital era de quase 240 mil pessoas. Já em 1920, o número chegou a 579 mil habitantes, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
De forma geral, o Brasil também passava por diversas mudanças políticas, econômicas e sociais como a industrialização, o crescimento da urbanização, a migração estrangeira e o clima instalado pelo fim da Primeira Guerra Mundial. Esses fatores motivaram os artistas a buscarem uma nova imagem para o país, que acompanhasse a modernização.
Roraimeira
Trio Roraimeira, precursores do movimento cultural em Roraima. - Foto: Divulgacão
O Movimento Roraimeira uniu entre 1984 e 2000, músicos, escritores, poetas e artistas visuais do Norte do país. No entanto, sua maior tendência foi a musical. Eliakin Rufino explicou que o Roraimeira também teve a influência do tropicalismo, um movimento de vanguarda que ocorreu no Brasil entre 1967 e 1968 nas artes e, principalmente, na música.
Segundo Eliakin Rufino, o século XX ficou marcado como o século de movimentos culturais em todo o país, e a Semana da Arte Moderna foi o de maior visibilidade, pois São Paulo sempre foi a capital comercial do Brasil.
“Os dois últimos movimentos culturais do século são exatamente o Mangue Beach do Chico Science e o Movimento Roraimeira. Então, como nós somos os últimos, o Roraimeira principalmente, nós vamos nos inspirar em todos os movimentos. Porque já está fechando o século, né? O Movimento Roraimeira eclode em 1984, ou seja, há exatos 15 anos do final do século XX e esse é mais ou menos o período de atuação do movimento”, detalhou o artista.
O movimento foi fortalecido com a participação dos cantores e compositores Neuber Uchôa e Zeca Preto, que junto com Eliakin formaram o “trio” Roraimeira. Com os sucessos Makuanimando de autoria de Neuber e Zeca, Roraimeira de Zeca e Cidade do Campo, de Eliakin e Armando de Paula, o Roraimeira se tornou um show de regionalismo, com um repertório construído e inspirado nas belezas naturais do estado.
O trio teve seu primeiro CD gravado ao vivo no Teatro Carlos Gomes, o álbum denominado de “O Contato de Roraima e suas influências indígenas e caribenhas” encerrou o movimento em 2000. O movimento artístico ocorreu em um período marcado pelas ditaduras no Brasil. No entanto, segundo Rufino, isso não impediu que a arte fosse realizada.
“Aqui na Amazônia, os movimentos realmente já são as últimas movimentações culturais. É natural, né? É natural que uma coisa que começa em São Paulo chegue aqui no nosso caso 62 anos depois né? Mas foi bom porque também temos movimentos lá [em outras regiões], O Clube da esquina dos mineiros e o movimento do pessoal do Ceará. São muitos movimentos em todo o Brasil. Então, veja que o século XX é marcado por duas ditaduras. e isso mostra a efervescência cultural imensa apesar das ditaduras”, contou.
O artista destaca que as letras das músicas e as danças da movimentação cultural referenciavam a natureza e os movimentos dos animais, como a canção Roraimeira de Zeca Preto, que fala das terras férteis, das serras, rios e frutos encontrados em Roraima
Influência pessoal - Para Eliakin, os modernistas também influenciaram a poesia e modificaram a postura artística que ele possuía. “Há uma influência de estilo, vamos dizer assim. Então, quando eu leio Oswald de Andrade, por exemplo, o chamado poema-piada, que é uma das modalidades poéticas que ele costumava praticar, isso vai relaxar bastante a minha postura que vinha de outras leituras”, explicou.
O escritor Oswald de Andrade foi uma das pessoas mais importantes do modernismo de 1922. O poeta, junto com Mário de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Tácito de Almeida e outros artistas e intelectuais se dedicaram a apresentar, expor e discutir uma nova arte brasileira.
Caldeirão cultural
Trio Roraimeira na inauguração do Teatro do Município de Boa Vista - Andrezza Mariot/Reprodução - Prefeitura de Boa Vista
A mestiçagem brasileira era algo procurado e valorizado pelos vanguardistas da modernidade, e foi sintetizada no caldeirão cultural de Roraima. “Era muito valorizada pelos modernistas e aqui [Roraima] nós vamos encontrar uma situação sociocultural muito parecida com São Paulo. Pode até parecer brincadeira ou exagero, mas Boa Vista é muito parecida com São Paulo e Brasília, são cidades que agregam pessoas de todo o Brasil”, explicou.
Apesar da valorização, Rufino acredita que os modernistas não deram tanta atenção à presença africana e afrodescendente no Brasil. Em contrapartida, para ele, existia uma valorizada mas debochada e brincalhona visão da cultura do povo indígena, como Macunaíma. Mário de Andrade se inspirou na divindade mitológica das sociedades indígenas de Roraima.
Além de uma população mestiça vivendo em Roraima, o estado também possui uma mestiçagem na fronteira, conectada por duas línguas inglesa e espanhola, e dez nações indígenas.
“O que o Roraimeira tem de modernista aqui é essa percepção também, de que essa diversidade que os modernistas observaram lá em São Paulo na década 1920, nós detectamos aqui também e procurarmos uma maneira de traduzir isso em arte e de fazer com que a nossa arte testemunhasse isso”, explicou o poeta.
O objetivo do Roraimeira era exaltar a diversidade linguística, cultural e social que o estado possui. O movimento buscava valorizar a cultura indígena e que reconhecesse a cultura indígena como ancestral, válida para todas as pessoas.
“A presença indígena aqui não está fora da capital de Roraima. Boa Vista abriga uma grande população indígena. A maior maloca de Roraima é Boa Vista. Então, aqui a gente não precisava nem ir a campo para pesquisar, né? A pesquisa está aqui dentro da cidade. O convívio diário, as histórias de racismo e de discriminação”, contou.
Influência
Reprodução/CASACOR
A Semana de Arte Moderna influenciou toda a literatura produzida no Brasil durante o século XX e se tornou um reflexo da história política e social, muito mais importante nas décadas seguintes ao evento.
Mesmo 100 anos depois, para o professor Roberto Mibielli, a Semana de Arte Moderna continua sendo importante e traz um legado fundamental para o ponto de vista do modelo revolucionário e também da história cultural.
“A arte moderna cresce de modo geométrico à medida que os anos vão passando, né? E alguns autores, inclusive, alguns escritores assumem os valores da Semana de Arte décadas depois, é o caso por exemplo do Roraimeira. A própria Semana vai continuar fazendo, de alguma forma, as pessoas entenderem a arte de um modo diferente e a civilização ao longo dos séculos vindouros”, relatou.
O Modernismo abraçou as questões nacionais e redefiniu o status de arte, sendo considerado como uma influência para outros períodos marcantes da cultura brasileira, como o Tropicalismo. No entanto, para Roberto Mibielli, algumas pessoas ainda vivem em termos estéticos, fazem ‘riminha’, acreditam em uma música com rima pobre, vivem uma poesia simplista e não chegam a entender a estética modernista.
“A Semana de 1922 continua fazendo sucesso, continua sendo e será mais importante ainda ao longo dos próximos anos principalmente nesse segmento da sociedade que ainda não entenderam o que é um poema sem rima, um poema diverso, livre, que ainda existem outras formas de fazer cultura, de fazer literatura, de fazer pintura. Porque as pessoas dizem ‘até meu filho faz’, mas não é bem assim, é preciso estudar”, afirmou o pesquisador.
Na análise do professor, a falta de um estudo sobre a arte provoca uma modificação em segmentos da sociedade que ainda resistem a novos estilos no uso das palavras e estão atrelados ao medievalismo, sobretudo na política brasileira contemporânea.
Pintura Abaporu, obra de Tarsila do Amaral. Foto: Reprodução/Google
A Semana de Arte Moderna carrega grande influência artística, mas não foi a causa da mudança na arte. Ela foi a consequência de segmentos culturais que já trabalhavam técnicas revolucionárias, segundo o relato do professor.
“A gente tem que pensar que já existiam alguns segmentos da cultura que trabalhavam técnicas profundamente revolucionárias. A pintura principalmente, com Anita Malfatti, eram segmentos que tinham uma vanguarda muito poderosa e forte, é a música com Heitor Villa-Lobos”, destacou Mibielli.
Segundo o pesquisador, a Semana de Arte Moderna em si não é um marco de nenhuma grande modificação. Mas, o símbolo de processo que começou um pouco antes do início do século XX no território brasileiro. À época, a sociedade acreditava que uma das funções da arte era a política, sobretudo no ponto de vista social e estético das vanguardas socialistas. A política nacional era atrelada ao coronelismo, a divinização de mitificações de políticos.
“Se a gente pensar que boa parte do século XX foi vivenciado por artistas que não pertenciam à elite, como pertencia Oswald, como pertencia a pintura de Tarsila, que era filha de fazendeiros ricos. Se a gente pensar que esses personagens não eram a maioria, a gente vai ver que boa parte dos nossos escritores, pintores, músicos e outras áreas da cultura de uma forma geral eram financiados pelo estado”, relatou.
À época da Semana de Arte Moderna existia uma política de mecenato de estado e, por isso, o Brasil escolheu os artistas que não conseguiam sobreviver apenas de cultura e lhes deu emprego. No entanto, era necessário uma regularização da atividade artística.
Marca Cultural - Para o professor, todas as áreas artísticas foram privilegiadas com o processo da Semana de arte. Atualmente, o Brasil tem ainda mais força ao deixar uma marca cultural. A internet permite que as pessoas possam se conectar com mais facilidade a artistas estrangeiros.
Vemos o impacto brasileiro na indústria cultural estrangeira na atualidade, como o lançamento do remix de “Fun tonight”, música original da artista Lady Gaga que tem participação da Drag Queen brasileira Pabllo Vittar, e apresenta elementos do forró e do brega. O hit já foi ouvido por mais de 4,6 milhões de pessoas em todo o mundo.
Segundo o pesquisador, apesar de gerar uma acessibilidade gratuita em muitos museus brasileiros, as artistas plásticas carregam um elitismo porque a estrutura de um teatro ou galeria de arte é seletiva para um segmento da população. Além disso, nem sempre é possível para um artista gastar dinheiro com produtos necessários para a pintura, escultura ou uma câmera adequada para a fotografia.
Obra ‘Entidades’ de Jaider Esbell, na 34ª Bienal de São Paulo. Foto: Reprodução/Bienal de São Paulo
Apesar disso, a arte não está somente atrelada aos museus. O espaço urbano tem a cada dia transformado o céu aberto em galeria. Os murais pintados nos prédios do Centro de Belo Horizonte, uma iniciativa do Circuito Urbano de Artes (Cura) que traz cor e vida ao dia de quem passeia pela cidade mineira.
O artista plástico indígena nascido na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, Jaider Esbell, foi um grande exemplo disso. Ele era um dos destaques da 34ª Bienal de São Paulo e suas obras ficaram em exposição na mostra "Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea", do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), da qual ele também era curador.
O artista morreu em novembro de 2021, em São Paulo. Antes de partir, ele evidenciou a vida indígena por meio da arte. Uma de suas obras, denominada de "Entidades", esteve em destaque no Parque Ibirapuera, na capital paulista. A obra é composta por duas serpentes flutuantes e foi instalada ao ar livre.
A arte indígena é uma das principais artes contemporâneas em Roraima. A proposta artística dá voz às lutas, resistências e a trajetória do povo indígena no estado e na região Norte do país. Além disso, a produção promove a percepção da existência indígena no mundo industrializado e a visibilidade das complexidades dos povos e os conflitos políticos sobre seus territórios.
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